sábado, 18 de junho de 2005

Moacyr Scliar disse tudo:

A cumplicidade

Se outro mérito o namoro não tem há um pelo menos que basta para consagrá-lo, e que se resume na reabilitação da palavra cumplicidade.

Que é, vamos reconhecer desde logo, um termo sinistro. Cúmplice é a pessoa que colabora em um roubo, em um crime. Cumplicidade seria, portanto, motivo para denúncia, para manchete de jornais: "Existem evidências de cumplicidade no assassinato. Convenhamos, a simples leitura da palavra faz com que a gente se sinta mal. Lembra-nos os obscuros meandros da mente humana, os medonhos segredos que pessoas podem ocultar, e que resultam de uma associação perversa, uma associação cujo único objetivo é o Mal.

A coisa muda inteiramente de figura quando falamos na cumplicidade entre namorados. E todos nós sabemos do que estamos falando; estamos falando de uma situação peculiar, que às vezes nem dura muito tempo, mas que depois será lembrada com saudade.

De que resulta a cumplicidade entre os namorados? Em primeiro lugar, de sua capacidade de desligamento. Que é um tipo especial de desligamento; não é aquele "tô nem aí" do cara que não quer nada com nada, que dá de ombros para a vida; um desligamento que envolve até certo ressentimento, certa amargura. Os namorados se desligam do mundo, mas isto resulta da própria situação que vivem. É como se estivessem isolados numa cápsula espacial, uma cápsula que ruma para uma galáxia muito, muito distante - a galáxia da paixão. Nesta cápsula só há lugar para duas pessoas. Ninguém mais ali faz falta. Namorados se bastam, e, porque se bastam, se desligam, passam a viver um para o outro. As outras pessoas miram o casal que se beija, se abraça, se acaricia; miram com ternura, miram com inveja, miram até com rancor - sim, a turma do "pouca vergonha" ainda existe. Mas os namorados simplesmente ignoram tais olhares, ocupados que estão em seus próprios negócios amorosos. Às vezes criam um idioma próprio, e até codinomes: o zozoco e a zozoca, o neguinho e a neguinha, o pupilulo e a pupilula (não vou identificá-los, porque não sou dedo-duro, mas trata-se, acreditem, de pessoas reais, agora casadas há muitos anos).

Claro, cumplicidade não é exclusiva de namorados. Há cumplicidade entre pais e filhos, cumplicidade entre irmãos. Mas a cumplicidade entre namorados é diferente delas, entre outras razões porque é ameaçada de transitoriedade. Quanto tempo decorrerá até que a cápsula espacial comece a perder o impulso que lhe deu o combustível do amor? Quanto tempo decorrerá para que o namoro comece a ser minado pela rotina? São perguntas inquietantes. Mas estejam seguros, algo sempre restará da cumplicidade. No corpo da amada ou no corpo do amado não ficam impressões digitais, mas as lembranças permanecem. Muitas vezes acontece que veteranos casais trocam um olhar na festa em meio aos numerosos convidados de uma festa ou de um casamento; e, ao se olharem, sorrirão, como o fizeram por muitos anos. É a cumplicidade que retorna. O amor só é eterno enquanto dura, mas a cumplicidade fica.

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